30.9.08

só o cinza não treme


da chuva que cai
meus olhos ficam pálidos -
uma poça d'água.

casa fechada
rigor de inverno
na árvore despida;


sopro do vento
estalo no chão;



a última folha caiu.

23.9.08

Porque era ela, porque era eu.

Dona Elizabeth mora na rua ao lado. É uma senhora no auge dos seus 70 anos: cabelos brancos, arrumadinhos, vestido florido, óculos grandes, sorriso cativante, olhar sereno. Sua casa é a de muro baixo, com uma caixinha branca do correio e um banquinho na calçada. É lá que ela costumava passar as suas tardes sentada, a olhar o movimento da rua. Até que dona Beth adoeceu por dentro: a vida dela foi mordida.

O marido dela, seu José, morreu. Senhor de idade, com vários problemas de saúde, vivia em uma cadeira de rodas, se alimentando por meio de sonda.Lembro bem desses dois. Toda tarde seu José e dona Beth ficavam ali, na calçada da casa deles: ele, numa cadeira de balanço e ela, no banquinho ao lado. Enquanto as crianças brincavam no meio da rua, empinavam pipa, corriam atrás de uma bola, dona Beth distribuia pipoca para as que iam sentando ali perto, cansadas de tanta correria. Seu José observava tudo. Ao invés de usar palavras, ele aprendeu a se comunicar com os olhos: eles diziam tudo que era preciso.

Pois bem. Certo dia, estava apressada, caminhando num passo só. Fui subindo a rua, em direção a parada de ônibus, sem me importar muito com o que ou quem estava no caminho. Carregava um furacão dentro de mim, na verdade. Enquanto andava, lágrimas escorriam dos meus olhos e eu só queria parar de pensar em tantacoisa e poder me acalmar e estancar aquele choro todo. Não foi preciso muito.
Lembro como se fosse hoje: bastou um olhar. Um olhar. O olhar mais bonito que já recebi até hoje. E foi dele, seu José. Ele estava ali, na mesma calçada, na mesma cadeira de balanço, do mesmo jeitinho - pequeno, frágil. Só que ele carregava todo o sentimento do mundo ali dentro daqueles dois olhinhos. E, no instante em que me encarou, eu pude sentir tudo isso. Era o que me faltava: a compreensão de alguém que nem sequer sabia o porque das minhas lágrimas, mas as entendia. Fui embora tranquila, carregando ele comigo.

Desde os meus tempos de criança, nunca falei com seu José ou com dona Beth. Mas, me sentia responsável pelos dois. Mais por ele, confesso. Ele passou a ser o meu talismã. Por muitos dias, passei pela frente da casa esperando o mesmo olhar. Nunca mais o recebi. Até que, certo dia, seu José não apareceu mais na calçada. Passou a ficar sentado dentro da sua casa. É, os sinais da idade chegavam, e seu José parecia não querer lutar muito contra eles. Assim, passaram-se dias, e nada dele na calçada. Dona Beth já não saia mais também. As coisas não iam bem. Fiquei preocupada.
Resolvi fazer a coisa mais sem noção que fiz até hoje, mas que não me arrependo de jeito nenhum: escrever para seu José. Na verdade, arquitetei todo um plano: escreveria um poema, colocaria num envelope e endereçaria ao 'senhor da calçada', colocaria na caixa de correios e pronto, simples assim. Fiz (quase) tudo certinho; na hora de colocar na caixa de correio, fui vista por dona Beth. Saí correndo que nem uma criança assustada, com medo dela me perguntar se eu sou louca. [hahahaha]
Eu não sei se alguém leu o poema para ele. O que eu sei é que, por várias semanas, passei por lá, na esperança de vê-lo. E, nada. Dias depois, soube que ele tinha falecido. Pobre seu José. Meu talismã tinha ido embora e eu nem tive a oportunidade de conversar com ele.

E dona Beth? Dela, ninguém soube mais notícias. Na verdade, até se sabe um pouco. Ela parou de sentar no banquinho da calçada - passou muito tempo sentada na cadeira de balanço dele - e de distribuir pipoca para as crianças que brincavam lá na frente. Ela agora tinha morrido junto. A vida dela tinha sido mordida, e ela não queria mais estancar a hemorragia que isso tinha causado lá dentro dela.
Eu só sei que essa semana passei por lá e a vi sentadinha lá dentro, na cadeira de balanço. Percebi que devia a seu José alguma coisa. É, devia mesmo.
Hoje, escrevi um poema do Leminski num papel branco e coloquei na caixinha de correio dela.

O poema dizia o seguinte:

nada que o sol
não explique
tudo que a lua
mais chique
não tem chuva
que desbote essa flor

P. Leminski


Eu não sei o que vai acontecer. Parei de fazer as coisas pensando nas consequências. Mas, sinceramente, espero poder ajudá-la. Eu sei que a vida não é justa, mas perder um outro talismã é maldade demais comigo.


*Seu José morreu ano passado, no final do ano passado.
*Em relação a idade de Dona Beth, eu tou chutando. Me guiei pela idade da minha avó :)

21.9.08

!




Nenhum ato humano é uma imitação completa e exata, cópia fiel, reprodução precisa de um modelo ou papel redigido de antemão. Em todo ato, os modelos são, mais uma vez, reproduzidos em formas nunca totalmente idênticas. Todo ato é, até certo ponto, uma permutação original, uma versão única do modelo. Os modelos não existem de nenhum outro modo, a não ser no processo de contínua e inescapável transformação.

Pois bem. Volto a esse mal-estar da pós-modernidade: o efeito-estafa. Quem acompanha o trajeto kafkiano deste lugar, sabe muito bem que sou filha única do Samsa: trago comigo os pormenores de ser metamorfosis contínua.


Após um longo processo de mudança, adaptação e descoberta, retorno com mais uma fase dessa permuta de casca, aqui. Sabem como é...toda vez que a estafa chega, é necessário.