27.12.08

tchibum nas emoções

Era toda essa coisa de mergulhar num abismo profundo, de braços abertos, cabelos esvoaçantes, vento no rosto e olhos fechados - que é para não afugentar as expectativas - que fazia com que ela acordasse suada e num pulo só da cama. Tinha os cabelos colados na cara, a respiração acelerada, o coração descompassado e uma falta de ar que não chegava a ser sufocante, mas, que assustava, assustava.

Esse medo descabido e latente das emoções que a atormentava justamente como era quando ela tinha dez anos e tinha que subir numa árvore qualquer ou escalar um muro para acompanhar a brincadeira das outras crianças. Acompanhar, ela acompanhava; de olhos cerrados, dentes trancados, força motora a 100% e pensamento no anjo da guarda, única oração que conseguiu aprender mesmo. E agora, tudo voltava à cena: aquela sensação de desespero e angústia pela negação do presente e os quereres de um após tudo isso, que sabe-se lá se tem futuro denominar isso de futuro, entende? Entende.

Aí, ela levantava e ficava em frente à cama, como quem tenta refazer tudo dentro das suas possibilidades, no caminho das linhas da palma da sua mão, na cadência normal dos seus passos. Suavemente, ela recria a oportunidade perdida minutos antes: dá um tchibum na sua cama, dá um tchibum nas suas emoções. Afinal, a madrugada ainda estava ali, bonita, reinante, só esperando a hora certa para que ela voltasse a acordar do mesmo sonho, e, mais uma vez, fizesse a sua escolha.

Ela? Dessa vez, escolheu entrar no acaso e amar o transitório. Sim, Carlos Pena Filho, entrar no acaso e amar o transitório.

22.12.08

baby, i love you




Tenho uma teoria acerca da importância da música nas nossas relações do cotidiano: para mim, uma relação só existe se ela tiver a sua música própria, aquela que serve de trilha sonora, que toca involuntariamente na sua mente quando a rádio sintoniza tal pessoa ou tal estação que te faz lembrar esse certo alguém.

Pronto, é disso mesmo que eu quero falar hoje, porque eu, ultimamente, ando gritando, escrevendo, assim, no ar, como uma doida, para quem passa na minha frente e é atingido, ferido, zapeado, lombrado ou chamado por tudo isso. Chego a parecer uma doidamaluca quando paro e jorro alguns versos de canções, meio desajeitadamente e, até, timidamente, ora em forma de cantoria, ora como uma leve e doce poesia: e quem recebe, pelo menos até hoje, tem reparado na [real] importância disso.
Não é que cada um tenha que ter um numerozinho presente naquela escala que a gente fica rodando o botãozinho atrás de uma boa freqüência não; o que eu quero deixar claro é que, justamente, são poucas as pessoas que têm essa estação marcada, decorada, entre os números principais da rádio da nossa mente.
Tenho uma música para cada um dos meus amores cultivados, sejam eles amores constantes, amores clandestinos, desamores ou eternos. E é de se impressionar como a freqüência é sempre fantástica!
O samba é, geralmente, dos desamores: amargura, cerveja, saudade e boas lembranças fazem com que ele toque na vitrola da gente e remeta a algum dos amores citados. As canções mais antigas, que a gente guarda nas estações chamadas clássicas, são as que nos lembram aqueles momentos que outrora estavam aqui, quase que na janela da gente, como aquela fazenda antiga e os violões, mas que hoje fazem parte de um passado cheio de Belchior, Benito de Paula, Clube da Esquina, O Grande Encontro e outras poesias que, inacreditavelmente, eu sei cantar desafinadamente e muito mal, mas não erro uma sílaba!
Os Novos Baianos, Gil, Gal e seus Doces Bárbaros, a sangria da Ave, a transcendência do Harrison, o amor transbordante do Chico, do Caetano, de tantos outros que fazem com que a gente grite, a gente pule, a gente se abrace, cante na janela do carro, com o vento batendo na cara, dance e dance e dance e nunca se canse é outro ponto importantíssimo: esses daí fazem parte dos amores constantes. Tocam todo dia, como quem já sabe que toca na mesma freqüência pulsante do coração.
As trilhas de filmes? Bem, essas, com certeza, viram as trilhas dos clandestinos: platônicos, efêmeros, suspirantes, seja lá a denominação que a gente quiser atribuir à isso, é fato que, de amores clandestinos, o filme da nossa vida anda cheio, não é? Só que, aí parece mais aquele enígma do "copo metade cheio ou metade vazio?", porque, se a gente parar para analisar, quantos rolos de filmes são precisos pra caber toda a sua vida? Vários, eu te garanto. E, por isso, meu amigo, te falo aqui, agora, sem nenhuma cerimônia: amores clandestinos são precisos, preciosos e (im)previsíveis nessa vida da gente.
Pra terminar, e os amores eternos? Esses são como as músicas das letras bonitas, que fazem a gente chorar cada vez que repetimos ela: ela consegue criar uma lágrima diferente para cada sintonizada na estação. São as músicas do João Bosco, com certeza. São as músicas que a gente sabe cantar todinha, sem pestanejar, e que, quando canta, sintoniza o pensamento em alguém. É como ouvir o bêbado e o equilibrista e não sentir um arrepio; não gritar o baby, i love you e cantar você precisa saber da piscinada margarinada Carolinada gasolinade
mim
colocando a cabecinha meio de lado, tentando sentir a música.
Minha gente, essa trilha desses amores eternos é, simplesmente, a trilha dessas nossas relações. Simples assim.

12.12.08

da série gente como a gente, número 1.


Quando a gente vê esses olhinhos pequenininhos, parecendo dois risquinhos que se apertam muito, mas muito mesmo, como que tentando segurar um absurdo de ternura e leveza que eles exalam, é quase impossível não se ver num sorriso quase nascente na gente; é que eles parecem refletir o que encontram pela frente, assim, meio sem cerimônia nenhuma.

Por que, na verdade, todo mundo sabe que o sorriso é a principal saída das nossas necessidades - é a síntese de todo um processo interior, resultante de duas etapas anteriores: a tese e a antítese. A tese a gente pode imaginar como a parte racional que pulsa dentro de nós (ou todo aquele encadeamento de pensamentos considerados lógicos, sensatos e previsíveis)...uma tentativa de fazer as palavras cruzadas do lado de dentro da gente.

A antítese? É, simplesmente, na melhor das hipóteses, o inesperado, asfixiante; é o magma, a semente, o engodo, o que lateja descompassadamente em todas as partes - inclusive em meio à tese.
Ora, pois, o sorriso não poderia deixar de ser a parte pulsante que resulta dessa mistura toda: é um depois.E não um depois que se resume a futuro; é um depois de resultado, de recompensa. É sorriso e pronto, chega.

E, assim como os seus olhinhos que exprimem melhor que os de ninguém aquela máxima de que "os olhos são a janela da alma", o sorriso dele traz um não-sei-o-que-bom-demais. Sabe ser terapêutico. Abraços que abarcam o mundo, o instante ali, quase fotografado pelos olhos brilhantes e cheios de "quero muito mais, sempre, da vida"; é disso que eu falo, que eu grito, que eu exalto, que eu admiro, que eu chego a me calar para pensar na quantidade de coisas que eu preciso dizer, apontar, mostrar mas que ainda não sei falar sobre. Mas, de certo, saberei. Quando a gente percebe gente assim, como a gente, não costuma deixar ir passear, ir embora, ir muito longe não. A gente sente falta e quer ali, num potinho, se puder... pra sacudir, apertar, amolengar, ou, só para sorrir mesmo.

Kundera, Piaf, Devendra and ribbons around the fumes...era só disso que eu tava querendo falar esse tempo todo, era só de sorrisos maiores;
só de gente como ele; era só de gente como a gente.
(texto prometido para ele, tinha que ser o primeiro.)

6.12.08

sim, inverno, estamos vivos.

Bom mesmo é o
dente-de-leão: a gente sopra por aí e pronto,
ele sai se espalhando, numa
cadência sem igual. Só quem tem trabalho nisso tudo
é o vento: ele é o
encarregado de levar cada partícula de semente que sai se
jogando no meio do
nada, como se já tivesse esperando ser embalada por essa
dança do
me-leva-que-eu-vou-junto. Só que, não pense que, apesar dessa total
liberdade de escolha do vento, as sementes acabam se deixando levar
completamente, como se não tivessem forma, tamanho e necessidade. Não é bem
assim.
É que muitas delas acabam se metamorfoseando e, por
conseguinte, se adaptando a cada
novo lugar ao qual são levadas. As que não
conseguem, simplesmente vão
caindo, caindo, caindo, até baterem no chão e
causarem um estalo que,
audível mesmo, só para quem a viu despencar.
Quer fazer o
teste? Sopra um dente-de-leão em frente a um
espelho, e espera para ver as
sementes que conseguem se acoplar nos poros do teu
rosto. E, aí, quando
perceber o último estalo no chão, você vai saber que,
apesar destes
pesares,
nós continuamos sempre sendo mapas mundi habitáveis;
são só
os poros,
sementes, formas, tamanhos e necessidades que acabam
mudando;

O outono é quase aí,
e,
sim,
inverno,
estamos vivos.

30.11.08

etnografia

Se você pegar o dicionário e procurar pelo significado da palavra mania, encontra a seguinte descrição:
  • ma.ni.a s.f 1 tipo de desequilíbrio mental 2 esquisitice 3 idéia fixa 4 mau hábito - maníaco adj. s.m.


Pois bem. O portador de manias é, adjetivamente, involuntariamente, assumidamente ou, simplesmente, um maníaco. Mas, como saber se você é um deles? E, pior, em qual nível de lucidez maníaca você está? Maníaco crônico, médio ou iniciante?


Esqueça esse senso comum de que apenas alguns carregam manias e que existem pessoas que não as desenvolvem. E quando falo em senso comum de manias, falo daquelas que, mascaradamente, aparecem com nomes como cismas, paranóias, neuroses, esquisitices ou excentricidades e que nos rendem títulos como os de loucos, insanos ou levemente perturbados. TODO MUNDO É PREMIADO COM UMA, essa é a verdade.


Alguns as desenvolvem logo no início da vida, outros vão as adquirindo com o passar dos anos, seja como reflexo de alguma situação vivida (a chamada seqüela), por vontade consciente de tal hábito, loucura crônica mascarada de excentricidade ou mesmo por motivos ainda desconhecidos mas que tem tudo para integrar o hall de mistérios da humanidade junto a casos como o do “quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?”.


Nós, seres humanos de telencéfalo altamente desenvolvido aprendemos a conviver com fases ao longo da nossa existência: nascer, crescer, se reproduzir e morrer. Nada muito complicado. Sendo assim, cada fase terá seu grau de importância devida para cada ser humano, e, por isso, podendo se considerar imprescindível no desenvolvimento de certas manias. Exemplo disso? A infância. É nela que os pequenos filhotes de seres humanos de telencéfalos altamente desenvolvidos se familiarizam com a vida moderníssima do pós-parto. Tudo é novo, tudo é lindo, tudo é apreendido. Entretanto, certos humanóides esquecem que há outras fases a serem seguidas e parecem estagnar por tempos a fio nessa, carregando certas manias com eles quando estão aptos para ingressarem nas próximas fases, como é o caso do xixi na cama, não dormir sozinho, chupar dedo, etc.


Mas não se preocupe, nem todo mundo é tão óbvio assim e, por isso, nem toda mania é conhecida, ou, pelo menos, tão conhecida para ser (re)conhecida como mania. É o caso dos nossos hábitos nem tão confiáveis do dia-a-dia. Todo mundo, se parar para pensar por cinco minutos a respeito do que julga imprescindível na sua rotina diária, vai ver que tem uma mania. Mania de limpeza, de organização. Minha mãe tem mania de escrever palavras com a ponta dos dedos enquanto conversa, meu irmão tem mania de só comer na primeira cadeira da mesa, meu cachorro tem mania de deitar em cima de qualquer pedaço de pano que ele encontrar pela frente.


Eu? Tenho mania de ler jornal de trás para frente, a folha de baixo para cima, mexer no cabelo, dormir do lado errado da cama, dormir coberta até o queixo, lavar o cabelo sempre que tomo banho, balançar a perna ou qualquer outra parte do corpo, ou, ainda, balançar o corpo todo, coçar o nariz quando estou com raiva, fazer gestos indicativos de muito ou pouco com as mãos, sempre prestar atenção em mil coisas ao mesmo tempo, mania de comer com garfo e faca nas duas mãos, mania de observar janelas, de ler vários livros ao mesmo tempo, andar descalça (...)


Não me pergunte o porquê delas, que, com certeza, não saberei te dar uma resposta. Todas as listadas e as que eu deixei de listar – por não ter as identificado ainda ou por falta de espaço mesmo – eu incluo no hall dos grandes mistérios da humanidade ou apenas excentricidades.


E, por falar em excentricidades, há, ainda, aquelas manias que são conhecidas mundialmente (que por força de quem as cultiva e pelo grau de neurose que elas trazem consigo) e viram marcas registradas. Afinal, quem nunca chamou o Michael Jackson de louco quando o assunto é a sua palidez funérea resultante da sua neurótica mania em ser branco? Em âmbito nacional, nada mais justo que exemplificar essas excentricidades com o nosso rei Roberto Carlos. Quem, em toda a sua vida, não já assistiu o especial de fim de ano da Rede Globo, onde o azul predomina em TODOS, eu disse TODOS os lugares do cenário?


Se você ainda não está conformado que sim, todos nós temos as nossas manias, sinto informar que é preciso que você reveja seus conceitos. Se, por outro lado, você se encontra em algum dos níveis maníacos já listados anteriormente, o que te resta é aceitar esse rótulo de louco, neurótico, esquisito, mentalmente debilitado, estranho e similares e levar a sua vida, afinal , meu amigo, já dizia o ditado: De médico e de doido, todo mundo tem um pouco.

29.11.08

boys don't cry

Foi só porque cada inspiração de ar ia se tornando
fatigante, que ele resolveu tentar acabar de vez com toda essa
expectativa.
Foi ao lugar marcado. Cambaleante, como quem anda
carregando um peso amarrado aos seus calcanhares. Cada passada era um esforço
tremendo para conseguir se manter em pé - manter a sua cabeça reta,
"altiva".
Quem observava a cena de longe, não entendia esse
caminhar de passos duros: não era nenhuma ladeira a rua, oras...
Finalmente, chegou ao seu destino. Não sabia se
ficava aliviado ou desesperado. Puro impulso esse de querer chegar lá nessa
rapidez. Nem deu tempo de se preparar, pensava ele.
Quer dizer, pensava em tanta coisa que os únicos
pensamentos inteligíveis que conseguiu captar antes que seu olhar cruzasse com o
dela foram estes mesmo. Só. Depois, tudo virou breu.
Fitou aquele olhar que parecia ter imposto um muro
de concreto entre duas realidades[agora]diferentes, mas que outrora, já
foram uma só.
O muro, na verdade, ele pôde enxergar visivelmente
após os 5 segundos que demorou perdido naqueles olhos: era o novo
rapaz.
O que fazer? O que dizer? O que
olhar?
Não sei dizer no que ele
pensou.
Apenas abaixou a cabeça, como quem sabe
que não podia mais tentar plantar a florzinha que carregava na mão em cima
do muro dela, em cima do muro deles. Ele tinha sido substituído.
Se misturou em meio as milhares de cabeças de
pessoas que passavam pela rua, e como em um filme, sumiu do local. Sem aquele
peso todo que carregava quando estava vindo.
Há quem diga que era a flor que pesava demais,
ela vinha carregada de coisas boas demais.
Há quem diga, também, que era o medo de ter
sido substituído que quase o fazia andar para trás.
E, há, também, os que dizem que não era nem
uma coisa, nem outra. Que ele tinha corrido o mais rápido que conseguia para não
chorar ali na frente. Porque, afinal, todo mundo sabe que
boys don't
cry
...



A flor ficou lá no meio do passapassa de gente, perdida naquela imensidão de pés.
Como eu não vi o restante da história, fica só em sonho/pensamento/vontade mesmo.

27.11.08

sebastian, you're in a mess...

Quando
percebeu, eratarde
demais: sebastiantinha puxado o livro da prateleira,
sem
muito,ou nenhum,
cuidado edesarrumado tudo!
Como num
efeitodominó, foi
tudo desabando:os
romances se misturaram com as
ficçõescientíficas, que, por
conseguinte,caíram em
cima e esconderam,
devez, as obras consideradas
utópicas.
O fato é que,
mesmodepois de
ter arrumado essa confusão
toda,
olivro puxado não
era,exatamente, o
que ele esperava ser:
continha, apenas,
aparte teórica do
quevem a
ser um simulacro.
Percebe o tamanho
daencrenca?
Poisbem, perceba.
Sebastian
nãopercebeu.
É que ele ignorou
oaviso bem grande
escritona parede
atrás da prateleira, e, que, na verdade,o
confundia
mais ainda: PUTTHE BOOK BACK
ON THE
SHELF.
Se o aviso servia
paratodos os tipos
delivros, então,
isso
significa que a escolha nunca ia
sersatisfatória?
Não soube
responder
apergunta
formuladamentalmente.
Folheou, folheou,folheou,
folheou.
Depois,arrumou a prateleira da forma
que mais o agradava.Antes
de
sair, reforçou
a cor do aviso. Saiu numa
passada
só.

23.11.08

como eu me apaixonei


Dias atrás, presenciei uma amiga agoniada entrar na sala, batendo porta, sentando, parecendo estar sufocada de coisas. Ela ia ficando cada vez mais vermelha, os olhos bem marejados, totalmente marinhos. Até que não se agüentou e começou a chorar e a contar o que tinha acontecido.
Assisti a cena admirada. Não pela agonia dela, e sim, pela capacidade de externar sentimentos.
É que, assim, eu nunca fui muito boa nisso não.

Mainha conta até hoje que, quando eu era pequena, aprontava as maiores coisas do mundo, e, na hora de apanhar - quando o caso era realmente sério, como foi quando colei chiclete na franja do meu irmão e cortei a metade dela - eu corria e escolhia uma sandália bem acolchoada, aquela que eu achasse que ia doer menos. Essa era a forma de eu tentar me safar 'inteligentemente' da situação sem deixar de receber a minha punição - é que minha mãe sempre fez questão que eu e meu irmão tivéssemos noção de
responsabilidade e consequências diante dos atos. Aí, claro, eu sempre pegava a mais 'molinha', sabe?
Nunca na minha vida pegaria uma sandália de couro. ATÉ PARECE.
E aí, apanhava sem derramar uma lágrima. Parecia coisa de criança ruim mesmo: trancava os dentes, prendia todo o sentimento do lado de dentro e ia ficando vermelha, como quem sabe que os sentimentos pareciam querer escapar por todos os buraquinhos, todos os poros. E aí, ficava concentrada nisso. Só nisso.
Apesar de eu acreditar, por muito tempo, que essa era uma das minhas qualidades - tinha aprendido a sofrer as consequências dos meus atos - sabia que, na verdade, isso era mais para mascarar um defeito que considero tremendo: meu orgulho. Sempre fui orgulhosa, sempre.E, por muito tempo, quis acabar com isso. Tinha vergonha as vezes, porque isso me atrapalhava demais quando eu queria externar certas coisas. Esse orgulho impedia.

De uns tempos pra cá comecei a perceber que venho mudando aos poucos, aos pingos. Tive um hiato imenso que me impossibilitou de escrever o que eu queria, quando eu queria, como eu queria. E eu fiquei agoniada, com tudo preso aqui dentro. Porque as palavras eram a única coisa que me faziam externar tudo. Sempre foi assim. Orgulho perto delas era apenas uma palavrinha a mais do dicionário, bem insignificante diante de todo o conjunto das outras.

Se a gente não consegue dizer o que tem para dizer ou o que gostaria de dizer, como tudo fica? já parou pra pensar nisso?
Por isso que, quando paro para pensar no quanto gosto de escrever, eu fico feliz só em pensar nessa minha história de como me apaixonei pela escrita.



P.S.

Perceba na foto acima a franja do meu irmão cortada. E perceba, também, o tamanho da criança que ainda aprontava - leia "eu" aqui. :)

21.11.08

rotina

E, foi só pela lei natural das coisas que ela se viu diante de um muro de ervas daninhas que cresciam quase que em dízima periódica. Lá estava ela: fora de tempo, sem pé, sem cabeça, sem lenço e sem documento, sem condições de nada...sem condições dela, sem condições de tudo, sem condições do mundo.
sucumbiu novamente ao colo mais próximo.
precisava descansar.

20.11.08

!





- Lua*, com qual dos beatles você quer casar? Paulo, George, João ou Ringo?

- Rindo??

- Rindo não, luana, RinGGGGo. Quer casar com ele, é? Porque?

- Que nome doido (!) hahaha ringo, ringo, hahaha

- ok, então você quer casar com ele!

- eu não! oxe! eca!

- e porque não, criatura?

- menino é chato, feio e solta pum!

- E tu?

- eu não, eu não.

- seeeeeeeei... hahaha

- pára thais, sua chata e feia!


aí ela saiu arretada comigo.



(só pra descontrair um pouco isso aqui! é que luana é uma criança de quase 5 anos meio diferente das outras. a prova disso? enquanto todas pensam que o papai noel mora na esquina da rua, ou no pólo norte, segundo lua, ele reside no Texas e vai trazer para ela dólares de presente de natal. Só não pode questioná-la sobre o que vem a ser o Texas e para que servem dólares, que ela fecha a cara, te chama de feia e chata e sai. é que ela se invoca rápido quando não tem uma resposta pronta. haha)




16.11.08

alguns tormentos

Não satisfeita em
ser totalmente riscada por dentro, ou, na melhor das hipóteses, quase uma zebra,
ainda assim, mantinha uma estranha mania de se pintar por fora.
Os arranhões que,
uma vez estando internamente, ficavam protegidos de agentes externos, que,
possivelmente iriam causar mais dor e agonia, agora apareciam a olho
nu.
Vez ou outra, ela
inventava de se arranhar. Ela mesma. Coisa simples: esperava suas unhas estarem
grandes o suficiente para causar o estrago previamente super calculado, e o
fazia. O fazia como quem sabe o que está fazendo, como quem se machuca sabendo
que o faz e, pior, porque o faz. Ela era auto-destrutiva. Era a única
resposta.
Primeiro um braço.
Depois o outro. O rosto. Não, não, o rosto não. Agora não. As lágrimas vão fazer
arder mais ainda. Preciso sofrer mais para poder aguentar essa ardência. Agora
tem que ser as pernas. Aí, sim, vou para o rosto. Porque aí, não vai restar mais
nada: tudo já vai estar riscado, sem chance de sobrar algum lugar limpo, sem
dor, sem marcas. E, só assim, eu vou saber que está tudo acabado. Porque, quando
já não se tem mais lugar para ir, o que se fazer, é chegado o fim. Não é assim
que te ensinam? Pelo menos foi assim que me ensinaram. E foi a única coisa que
aprendi.
Simples assim:
como dois mais dois são quatro.
Ela repetia
em tom ameaçador, enquanto fazia o que tinha que ser feito:
- Não se perca de si mesma.
E assim, ia
seguindo. Era só o tempo das feridas criarem casquinhas, aí ela vinha e fazia
tudo denovo. Ciclo vicioso. Passou muito tempo da vida fazendo e refazendo isso,
até que um dia, parou de se arranhar, mas continuava repetindo a mesma frase de
sempre: - Não se perca de si mesma.
Tinha se
perdido dela mesma; pelo menos por enquanto.



15.11.08

colhendo certezas

É que ele adorava quando ela o abraçava assim, meio sem jeito, mas, ao mesmo tempo, cheia desse seu jeitinho desajeitado. Esses abraços o faziam ter a certeza de que ele queria estar acordado por ela, estar por ela, ou, ainda, ser por ela.

Ela se virou ainda a tempo dele poder olhar para as suas costas e contar os sinais espalhados pelo seu corpo. Essas coisas dela. Só dela. Não resistiu. A abraçou novamente, como quem grita desesperadamente para que ela permaneça.

E não é um permanecer de ficar ali, até o dia amanhecer e a noite voltar, não. É aquele ficar de não ir embora. Não ir embora. Ficar com ele e ficar para ele.

O abraço retribuído era a resposta que ele precisava.
Estava tudo bem.









Estar acordado por ela, estar por ela. Ou, ser por ela.

14.11.08

Hoje o samba saiu, procurando você

Foi de repente que o cigarro queimou os dedos dele. Tinha esquecido que, de uns tempos para cá, mantinha um ritual sagrado todo dia, nessa mesma hora, nesta mesma janela.
De uma maneira nem um pouco desajeitada, com um cigarro na mão, se encostava meio de lado na janela que dava para a rua principal. Meio de lado é eufemismo, já que, na verdade verdadeira mesmo, ele se virava completamente para a direita, como quem quer evitar o lado esquerdo de qualquer maneira. Fumava seu cigarro calmamente, como se estivesse matando o tempo, como quem espera algo junto de alguém que só pode te oferecer o silêncio e, visto isso, uma falsa promessa de companhia. Era mais ou menos assim o seu ritual.
As vezes, até que se distraia com alguma coisa: o carrinho de cds piratas, a mulata que passava rebolando em cima do salto alto, o garoto que descia a ladeira de bicicleta, ou algum conhecidovizinho que, sabendo que iria encontrá-lo ali, passava acenando e querendo puxar conversa.
Mas, a máxima atenção que poderia dar a alguém, seria um olhar sem um desvio súbito.
Havia nos seus olhos uma espécie de coisaestranha; sua mudez era a prova de que, definitivamente, ele carregava todo o peso da alma não nos seus ombros, e sim nos seus olhos.
Nos três meses que se passaram desde a sua vinda para esse sobrado, tinha saído do seu refúgio uma meia dúzia de vezes: algumas para comprar mantimentos, outras para caminhar estranhamente até a esquina e, logo em seguida, voltar para casa. A sua sorte era um amigo - seu único, aliás - que vinha toda semana conversar, trazer coisas que precisava e fazer companhia. Só.
Aliás, só era como o chamavam.
Alguns até arriscavam que ele era mudo; que uma espécie de mudez o atormentava. Ou uma gagueira. Sim, sim. Uma vez, correu um boato que ele gaguejava tanto, que resolveu parar de falar de vez, e, para evitar isso, acabou se isolando. Tinha gente que contava até que ele tinha inventado uma mentira e que o gato tinha comido a língua dele - essa as crianças detestavam. Ou então, falavam só que ele devia ter feito algo de muito ruim a alguém e tinha rejeitado a vida de vez.
Nisso eles tinham razão: ele tinha rejeitado a vida de vez.
A posição na janela não era proposital não: ele evitava ver o sol se pondo. Odiava ainda não ser forte o suficiente para conseguir vencer essa sua vontade de ver vida, mesmo que seja a dos outros. Foi aí que estabeleceu esse hábito de fumar na janela: só assim, uma vez no dia, poderia contemplar a vida como ela é, por um certo espaço de tempo - no caso, o tempo que o cigarro durasse.
O que se sabe é que, até aquela tarde em que o susto da queimadura do cigarro o fez derramar o seu copo de bebida bem em cima do cigarro caído no chão, causando o incêndio do seu apartamento todo, ele sempre soube esconder o seu mistério. Morreu ali, esperando alguma coisa que não se sabe bem o que era, a que horas chegaria, data, dia da semana, ano e todo o resto da documentação.
O acontecido serviu de pano para a manga de muitos boatos em toda a vizinhança: desde surto psicótico, tentativa de roubo + assassinato, até suicídio. Pois é.
Ainda tinham uns metidos a poeta que, sentavam ali na frente, e nas rodas de conversa, tentavam conquistar as mulatas da vizinhança fazendo versos sobre o estranho do cortiço e a sua morte vendo a vida passar pela janela.
Ah! e pensa que os sambistas deixaram barato? Na mesma noite em que ele morreu, no samba do bar da esquina só se ouvia
-
Pedro pedreiro tá esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro Norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo espere alguma coisa mais linda que o mundo
-
Era a única maneira que eles tinham de reverenciar o desconhecido. É que agora todo mundo entendia a mudez dele: ele carregava ânsia demais nos olhos para ter forças, ainda, de falar. E de viver. Quem sabe?
-
O samba continuou até o dia amanhecer.

8.11.08

[mariposa de] sueño.

ele não sabia muito bem como foi que acordou com aquela frase feita na cabeça.
porque, parecia coisa de filme, daqueles waking life da vida: de acordo com o roteiro, ele acorda com uma frase estampada no breu que aparece quando ele se dá conta que está acordando mas ainda mantém os olhos fechados. (sabe como é, né?)
pois bem. é isso mesmo.
aí, ele abre os olhos, repetindo a frase mentalmente, sem muita energia ainda para tentar um movimento de boca, pega o papel que está na mesinha do lado da cama e escreve as palavras, como quem ainda não sabe bem o que está acontecendo ou o peso que aquilo tudo pode ter. na verdade, ele só intui qualquer significado besta, a princípio, e, por isso, resolve registrar tal acontecimento. é que, a gente sempre ouve por aí que fulano sonhou com o número que foi sorteado na megasena, ou que sicrano sonhou com um boi e apostou no jogo do bicho e levou uma grana danada, entre outras lendas urbanas, né?
então, ele fez isso. anotou com um rabisco rápido, em linhas tortas, sem se importar muito com a forma que escrevia. afinal, eram seis horas da manhã de um sábado, e ele tinha sido acordado por uma frase. uma frase. uma frase?
é, até aqui parece realmente um roteiro de um filme/curta ficção. quer dizer, qualquer coisa menos realidade.
quem é que acordaria com uma frase? as pessoas, aquelas que têm o sono leve, acordam com barulhos, ventos fortes, esse tipo de coisa quase-bruta-mas-não-tão-bruta-pra-não-ser-meio-abstrata-mas-também-nem-tão-abstrata-pra-ser-realmente-abstrata. mas uma frase?!?!??!?!
nesse meio tempo, seu coração já tinha começado a bombear sangue suficiente, a adrenalina já corria normalmente, tudo trabalhava. e ele não tinha mais como se refugiar no sono que tinha sido interrompido; isso já tinha se esvaído.
aí ele se virou, como que numa tentativa de ignorar aquilo que estava escrito no papel. virou as costas, fechou os olhos, puxou o lençol para mais perto e pronto, se jogou. se jogou mesmo, como quem se atira desesperadamente pra frente quando vai atravessar uma avenida movimentada e calcula de forma bem desajeitada a distância/velocidade do carro que está vindo, e se joga, achando que tudo está certo e que vai ocorrer do jeito que se pensou. mas se jogou onde?
se jogou no abismo que se formava dentro dele: parecia que tudo tava juntoemisturado numa via de mão única, que levava diretamente ao lado esquerdo do peito. não adiantava disfaçar. era isso mesmo. isso mesmo.
finalmente, quando resolveu se levantar, sentindo umas pontadas do lado esquerdo do peito, pegou o papel, uma xícara de café, caminhou até a janela da frente e leu em voz alta o que tinha escrito, meio com dificuldade, já que a letra não ajudava muito:


- eu tou com saudade.


só restou um riso. e dois, e três.

4.11.08

talvez(es)

A única coisa que ele disse foi que não tinha certeza de nada. Aliás, que não tinha certeza.

Assim, direto. Na lata. De uma vez. Em uma única tomada de fôlego. Como quem cospe um caroço de azeitona depois de tê-lo roído todo. Como quem diz: - Pronto, falei.


E, para quem assistia a cena, já era sabido. Ela sabia.


Era mentira. Mentira das piores; daquelas que a gente já sabe que não é verdade antes mesmo de ser palavra proferida/mentira consumada: o suspiro que a antecede a entrega de primeira. Porque, não é aquele suspiro proveniente de uma metralhadora de síncopes que costuma vir, por exemplo, quando a gente tem algo muito importante pra falar e não se sabe bem se vai agüentar a situação. Aí temos que inspirar a maior quantidade de ar que conseguirmos para ir em frente. Não, não era isso não.


Era daquele que vem parecendo fermento novo em massa de bolo: faz tudo crescer numa rapidez sem tamanho, e quando a gente vê, já está passando da borda, tomando um rumo inesperado e fazendo estrago pra tudo que é lado.


E, nesse meio tempo, tudo era um silêncio muito grande.
Onde já se viu uma conversa de silêncios?


Pois bem. Não se via. A única coisa observada no meio daquele buraco no qual se afundavam era algo tomando forma nas pupilas dela. E, não eram apenas olhos molhados, não. Ia além.
Não se sabe ao certo quando começou e porque tomou forma justamente nos seus olhos. Há quem diga que, enquanto as suas pupilas se dilatavam num par de olhos marinhos que não costumavam ser os dela, a boca tremia enquanto tentava balbuciar algo. Uma resposta, talvez.
Mas como, se não havia nenhuma pergunta a ser respondida por ela? Talvez quisesse saber por que ele não tinha certeza se queria ficar. Talvez tivesse buscando uma explicação antes de resolver piscar os seus olhos e deixar as lágrimas, que lá se acumulavam, deslizarem. Se desprenderem. Tomarem rumo.


Ou talvez tivesse escolhido não dizer nada de muito inteligível mesmo, pensando que o silêncio fosse a melhor maneira de compreensão.


Talvez tivessem atingido o ponto em que o silêncio basta. Ou que fosse a única maneira dela poder pensar direito. Tinha vergonha dele, por ele ser assim; tão fraco. Tão pequeno. Tão não tão ele.


O fato é que, junto a única lágrima que conseguiu se desprender, vieram, também, as únicas palavras proferidas ali desde o “não tenho certeza” dele e todo o silêncio que tinha comido, sugado tudo como uma areia movediça entre os dois.


- Eu tenho... certeza. Certeza que não quero ficar.


Dito isso, tomou o último gole da xícara de café que estava na sua frente, engolindo aquele líquido frio, talvez docemente amargo, ou, ainda, fraco demais para ser uma mistura formada por pó de café + água + lágrima salgada dos seus olhos marinhos.


Quando partiu, levou as mãos nos bolsos e a cabeça um pouco caída. A coragem pesava-lhe nos ombros.


Não olhou pra trás. Sabia que, se olhasse, podia deixar um pedaço de qualquer coisa ali, naquela qualquer coisa que ela nem sabia mais o que era. Partia inteira. Completa?


Mais na frente, hesitou.


Continuou andando, para longe.


Ainda bem que não esqueceu da lágrima com gosto de café antes de partir.

26.10.08

semente de vulcão

- era uma voz, um vento, um sussurro, relâmpago, trovão e murro

Não, não e não. Mil vezes não. Ele repetia copiosamente o mesmo monossílabo, que parecia ganhar intensidade e firmeza a cada repetição. Só parecia. Na verdade, o que Antoine queria era ser entendido. Mas como, se nem ele mesmo parecia se entender? Todos sabiam, inclusive ele, que ele era a própria definição de imprecisão. Não conseguia ser preciso: até nos seus rompantes de eqüidade, muitas vezes não sabia como proceder. Como, se o que ele mais fez durante esse tempo que costuma contar foi exercer essa tarefa? Não se sabe. Ou se sabe? É que, enquanto ele zelava pelo ‘justiça seja feita’, impondo-se a quase condição de balança libriana da qual não pertencia, era visível um carneiro colérico e inquieto quase pular dos seus olhos, esperando por uma liberdade que, devido a sua racionalidade, era quase um horizonte distante. E agora, como se já não bastasse todo o eco causado pelas suas palavras jogadas contra as paredes do corredor que levava a escadaria, ele agora escondia os olhos, como se soubesse que eles não cooperariam nem um pouco com a situação. Tudo errou.


- uma palavra quase sem sentido, um tapa no pé do ouvido

Ela assistia a cena pelo olho mágico do apartamento. Ela agora se banhava com as suas lágrimas, que pareciam pesadas demais para permanecer nos seus olhos, como fizeram quando ela resolveu dizer com todas as letras que ele era uma semente de vulcão. Semente de vulcão? De onde diabos ela tinha tirado isso? Não importa. O fato é que, como, senão por meio dessa figura de linguagem, ela poderia explicar tudo o que tinha acontecido para ele? Porque era tudo tão simples no começo. E que ela passou muito tempo buscando uma lógica para mantê-lo consigo. Sabia que isso não seria a solução das suas dúvidas, e sim, um alimento constante e voraz. Não importa isso também. Foco.Foco. Como conseguiu explicar para ele o que era uma semente de vulcão? Será que ele entendeu?


- um movimento, um traquejo forte

Tinha dito tudo o que pensava. Na verdade, tinha sido sincero. O que ele podia fazer? Se culpar? Não, não faria isso. Tinha sido verdadeiro com ela desde..desde sempre. Mas, porque agora sentia esse sentimento de preocupação que ultrapassava o querer bem? Será que ele trazia um pouco de culpa junto? Porque, se eu não fiz nada? Levei até onde deu. O barco tinha que acabar de queimar a gasolina em algum porto. Disso todo mundo sabe. Ela sabia que esse não iria muito longe. Mas, porque ela tinha que me falar tudo isso? Deixar tudo mais complicado? Será que não entende que as coisas podem ser fáceis como eram no começo? Eu sei que ela também acha isso..ela me disse que tudo era fácil no começo. Pior é que não consigo ter raiva dela. Por ela ser assim, digamos que, sem preparo pra esse tipo de situação. Sempre achei que a gente se entendeu de forma errada. Que esquisito isso. Sempre achei mas nunca disse. Deve ter sido que faltou. E porque ela me fala coisas que sabe que me deixam assim, meio com esse sentimento aí que eu não sei o que é ao certo? Por que ela veio dizer que eu era uma semente de vulcão? Ela arranja cada coisa...só ela. Só ela.


- era uma linha sem começo nem fim

Maria sabia bem o valor das suas palavras. Sabia ser forte na escolha delas. Uma das únicas coisas que aprendeu foi o manejo das benditas, e disso se orgulhava. Uma semente de vulcão. Tinha gostado disso desde a primeira vez que ouviu o nome nas ladeiras da cidade. É que ela costumava atribuir certas coisas a pessoas, objetos e lugares. As vezes achava que se ocupava demais nessa atividade, outras não. Gostava quando as pessoas perguntavam a ela o significado de tal coisa. E mais ainda quando se sentiam únicas devido a atribuição feita. Só que, quando disse para ele que ele era uma semente de vulcão, não obteve uma resposta. Na verdade, pode até ter obtido, mas não soube interpretá-la. Ou não quis. Vai saber de Maria.. o fato é que, ela acreditava que todo mundo carregava um vulcão dentro de si, daqueles sem datas previstas para erupções. Sim, sim, porque, vai saber quando a gente pode se apaixonar? Ou acordar cheio daquela tristeza que não se sabe de onde veio e como, se só o que você fez foi dormir? Pois bem. Somos todos vulcões prestes a explodir devido a quantidade de sentimentos que carregamos. Ponto um. Tinha explicado para ele, na verdade, desenhando tudo no ar, como se tentasse fazer com que ele percebesse como tudo era tão simples. Ele torcia no nariz, meio que querendo demonstrar que queria logo a parte objetiva da história. Pois bem. E porque semente de vulcão? É que, em meio a todas as erupções que ele tinha causado durante o tempo juntos, era quase impossível ter restado algo de bom. E, incrivelmente, o que tinha restado era uma semente. Sim, uma semente no meio da poeira.


- passado, risco e recorte se descortinaram

Sempre achei a Maria meio viajada. Mas gostava, ria até das suas idéias meio sem pé nem cabeça. Porque era engraçado em como ela acreditava nas coisas e como parecia feliz em compartilhar comigo isso. Era importante pra ela. Mas, confesso que as vezes não gostava dessa mania dela de falar tudo por meio de metáforas. E o pior: vir reclamar comigo depois, falar que não sabe nada de mim, que eu só confundo ela, não dou segurança, eticétera e tal. Se formos por uma análise mais fria e direta, dá no mesmo, não? Nem sempre as figuras de linguagem podem ser compreendidas por outra mente que não foi a que a criou. Mulher é assim mesmo, meio doida. Nem adianta tentar entender. Mas eu juro que ela passou dos limites quando disse que uma semente tinha restado no meio da poeira. Isso, pra qualquer homem, assustaria e significaria..bem, você , homem, sabe. Mas, eu sabia que não era isso. Nós sabíamos. Mas, por outro lado, nem quebrei minha cabeça pra saber o que era. É melhor cortar o mal pela raiz. A gente já viveu o que tinha que viver. Tchau, adeus, goodbye. Tava irritado com tudo isso já. Mas, porque diabos eu não conseguia deixar ela ir embora? Que porra acontecia comigo? Eu sei que é melhor assim, ela também sabe. E, em nenhum momento eu a pedi pra ficar. Não seria justo. Não seria. Não seria..Não. Não. Não.

- era uma estrada, muitas curvas tortas, quantas passagens e portas ali se ocultaram

Ela sabia que não tinha jeito. Que, devia ir embora e que, lá no fundo, queria ir. Mas, tinha medo de ser sozinha. Não é que ele fizesse companhia à ela, porque, na verdade, ele nunca esteve ao seu lado..completamente. E, pra ela, o que importava era o complemento, não a parte do todo. Era o todo e a parte. E, claro, ela sabia que era uma decisão difícil essa a se tomar, porque, o que mais a atormentava era a falta. A saudade. Essa palavra a assustava demais. Mas, remediado já estava. Since the beginning. Só não sabia como fazer isso. Alguém tinha lhe dito que sempre era difícil, só que as coisas se tornavam quase impossíveis quando era algo que a gente gostava e não queria que fosse embora. E aí, quando eles sentaram pra ter a conversa,ela precisou expulsar o dragão que estava do lado de dentro. Foi como uma bola de fogo, saiu incendiando tudo. Um misto de emoções, dores e dissabores. Mas, era preciso, não era? E, até a hora em que ele andou para a porta, sem olhar para trás, ultrapassou a linha divisória entre o dentro e o fora, e bateu a mesma, ela sabia que a tal da semente ia ficar lá. Ela tinha conquistado o seu espaço.




Aí Maria acordou, ainda sem vontade de abrir os olhos, como numa tentativa de prolongar o sonho que acabara de ter. Na verdade, queria ver até onde a sua cabeça poderia desdobrar essa história. Não se sabe bem se ela ficou triste por ter acordado aí, ou feliz, por ter visto que acordou justamente onde deveria ter acordado. O fato é que, a primeira coisa que fez, antes mesmo de abrir os olhos, foi abrir a boca e falar:

- a semente de vulcão é o amor, seu idiota. Ah, se é...

E aí, abriu os olhos e emendou o cher antoine, je suis vraiment desolé mais je ne peux pas partir avec toi.

25.10.08

Crônica de um Menino Só

E ele era tão sozinho, mas tão sozinho, que cada um dos seus vinte dedos eram pessoas diferentes, alternando sexo, nome, sobrenome, idade, profissão e endereço (obviamente) a cada dia.
O ruim era só ter que enxaguar as mãos tortuosamente todo final do dia, deixar a água cair na pontinha dos dedos para apagar o cabelo mal desenhado, os olhinhos pequenininhos e a boca meio sorridente dos vinte. Doía ter que destruir tudo isso. Esquecer as horas de conversa, as horas de preparo dos dedinhos, tudo, tudinho.

Esse esfrega, esfrega deixava tudo vermelho: suas mãos - da onde saia toda a força - seus dedinhos - que recebiam toda a força - e o seu rosto, também. É que ele morria de vergonha de ter que fazer isso com as únicas companhias dele. Parecia uma espécie de traição, isso dele. Esse não querer se apegar a ninguém.

Ah, como ele odiava essa sua característica; algumas vezes, deitado no travesseiro, depois de todo o procedimento do 'lave mãos', ficava se perguntando se isso era uma qualidade sua ou um defeito. Ficava olhando os dedos das mãos, e, assim, tendo eles completamente nus, os observava meticulosamente. Parecia que cada giro das suas mãos era um movimento calculado. Procurava afeição por aqueles dedos que, a única identidade que poderiam ter era a de seus dedos, dedos do menino só. Entretanto, ele bem sabia que nunca quisera - e não iria ser agora - se apegar a nada, inclusive a ele mesmo. E, pelo rosto vermelho de vergonha em cada noite que ele colocava fim no seu simulacro, se sabe que ele realmente considerava isso um defeito seu. Só não se sabe porque ele tinha escolhido viver nesse faz de conta...

O fato é que, por escolher o simulacro como estilo de vida, ele teve lá as suas recompensas: na sua mente - tão obtusa e pequena - não convivia nunca com a mesmice.

É bem verdade que, estando num estado crítico de simulacro da realidade, ele podia criar o que quisesse, na hora que achasse conveniente. Mas, sinceramente, ele foi apenas enganado pela mesmice da vida: escolheu viver a mesma coisa todos os dias, mudando apenas algumas etiquetas das coisas que ele mesmo fabrica. E quem é que, hoje em dia, está interessado em viver apenas com o que se fabrica?

Triste de quem passa a cantar o todo dia ela faz tudo sempre igual todo santo dia.

Afinal, se a gente vê todo dia como santo, porque deixar o todo santo dia existir?


24.10.08

até onde a vista alcança?


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vou com sonâmbulos e corsários, poetas, astrólogos e a torrente dos mendigos perdulários.
Cecília Meireles

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18.10.08

carta a um amigo

querido,

você não sabe e nem pode ter idéia do quanto eu sinto muito por tudo isso. na verdade, sentir é uma das minhas especialidades, disso tu sabes. e, por temer a tua incompreensão, resolvi te pedir desculpas com a única coisa que, mesmo vez ou outra fugindo de mim, eu sempre carrego comigo: um monte de palavras.

as vezes 'desculpa' soa tão esquisito, né? parece um martelo caindo em cima de um prego. rápido, objetivo, seco, certeiro. e eu não queria que o meu sentir fosse resumido a todas essas atribuições aí que a 'desculpa' carrega consigo. Porque ele vai bem mais além. vem de lá de dentro mesmo.

eu bem sei que a gente nem sempre [pode] faz[er] o que quer, nem sempre [pode] ajeita[r] as coisas da maneira que queremos tanto. e é fato que isso é coisa antiga, todo mundo sabe disso - ou pelo menos deveria saber.

não quero ser tua algoz e te falar mais uma vez que desde sempre tudo esteve claro, claríssimo até.
mas é que, eu não sei bem onde foi que tu perdesse o foco, em que momento, a que segundo.
eu também fico me perguntando como lidar com uma situação dessas quando, na verdade, o que eu queria era estar ali te falando pra levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima - como tantas outras vezes fizesse comigo e se mostrasse um verdadeiro amigo.

e aí, padeço em meio a esse martírio. ser ou não ser. quer dizer, ser ou não ser não! porque, nunca deixei de ser sua amiga. é o ser 'estar presente' sem embaralhar mais ainda as coisas.
não quero que me entendas mal, mas, também, não tenho coragem de te olhar e te falar que tu estás confundindo tudo. nesse ponto eu sei que nunca fui mulher com m maiúsculo.
mas, me ajuda, vai. aceita essas desculpas gigantescas e confusas e vê se recupera o foco na amizade que a gente construiu por cima de tanta distância.

e eu fico triste em saber que eu te fiz ficar mudo, calado mesmo, e não soube ler os teus silêncios - estes que imagino o quão desconcertantes eram.
mais triste ainda fico em ter que te dizer que, infelizmente, só posso te oferecer o que tu sempre teve : a minha inteira amizade.

espero que esse pedido de desculpas esquisito tenha aliviado um pouquinho o teu coração, porque, só assim, eu vou me sentir aliviada também.

p.s.
o pedido de desculpas tinha que ser esquisito também, né? assim como eu..



15.10.08

divagações na janela de um ônibus



se as cores só existissem com luz, como seria quando fechássemos os olhos?

ia ficar tudo imerso em preto pra sempre, até despertarmos?

os nossos sonhos seriam privados de cores?

simples. a gente teria que parar de se concentrar no sonho pra se concentrar nas cores que iríamos tentar pintar dentro deles, o pincel que iríamos usar, todas essas pequenas coisinhas, e, acabaríamos perdendo toda a magia de tentar aproveitar o sonho ao máximo.

não que eu diga que não teria graça se nós mesmos formulássemos cada pedacinho dos nossos sonhos, não, até acharia bem interessante.mas é que, sonho é feito pra gente ter e depois acordar no susto/expectativa de tentar lembrar.

se a gente controlasse as cores que vêm nos sonhos, daí não seriam apenas sonhos..seriam sonhos induzidos, e esses, ah, esses não me interessam, de verdade.

veja bem... eu continuo achando que sonho é sonho, mesmo sendo colorido, preto e branco, preto, ou branco.

eu só acho que deve ser muito ruim sonhar em preto e branco, mesmo quando parece ser um filme antigo...a gente sente que falta algo;

vai ver é a cor que anda dentro da gente...né?

8.10.08

agenda-setting e a vida nossa de cada dia..


O verbo informar, derivado do latim, originalmente significava, em inglês e francês, não só relatar fatos, mas, também, formar a mente. Desde o século 15, com a revolução da prensa gráfica criada por Gutenberg, a importância da informação já era claramente apreciada em alguns círculos sociais. Mas, foi nos séculos seguintes, com a formação de uma sociedade comercial, resultante das revoluções francesa e industrial, que ela ganhou destaque.

Com o aumento do número de impressos que a prensa proporcionou, uma imprensa periódica pôde se formar. Essas publicações, muitas vezes, eram lidas em voz alta e discutidas nos cafés - estes que, se tornaram um foro político, onde homens, mulheres e até os que não sabiam ler tinham voz na discussão do relato oral das obras - embora nem todos fossem ouvidos com igual interesse.

Durante a revolução francesa, a mídia desempenhou um papel importante, atuando como uma formadora de opinião entre as diferentes esferas da sociedade. Obras como a Enciclopédia despertavam a consciência política e transmitiam conhecimento não só para os ricos que podiam comprá-las, mas, também, à população em geral, já que edições mais baratas foram lançadas devido à facilidade de publicação que a prensa trouxe.

No entanto, é fato que a tecnologia não pode ser separada da economia e que o conceito de revolução industrial precedeu o de revolução da comunicação. A revolução industrial trouxe a idéia do avanço, do novo, em todos os setores. Na mídia não seria diferente. O telégrafo, o rádio, a televisão, a fotografia e o cinema surgiam como a vitória sobre o tempo e o espaço, como facilitadores da ‘nova vida moderna do homem na era moderna do mundo’. Aliás, desde os primórdios da humanidade, o homem busca facilitar a sua vida: inventou a roda, dominou o fogo, descobriu a eletricidade... Afinal, essa seria mais uma fase da história das descobertas humanas, ou o homem estaria condenado a estagnar nisso? Regressão ou evolução?

Assim como a soma, no Admirável Mundo Novo do Huxley, e os comprimidos anestesiantes, do Fahrenheit 451, a sociedade de hoje vive das informações triviais que a mídia escolhe – ou melhor, segundo ela, ‘seleciona’- mostrar. A manipulação de notícias é fato mais que provado no dia-a-dia da imprensa. E o que a população faz a respeito disso? Senta no sofá e desfruta de toda a programação disponibilizada pelas redes de comunicação – seja ela na TV, no jornal ou no rádio. Aliás, um dos pontos fortes de crítica que o Fahrenheit faz a sociedade é o fascínio que a televisão exerce sobre as pessoas. Muitas delas crêem que assistir a quatro horas de TV as torna aptas a uma reflexão acerca do mundo.

O que se deve deixar claro é que não devemos ser contrários à inovação, afinal, quem vive de passado é museu. Entretanto, do que adianta se sentir poderoso por ter um controle remoto em mãos e poder passear por diversos canais de informação por segundo na TV, se a maior parte do que é veiculado pela mídia não nos dá chance de reflexão?

Voltando à questão lançada anteriormente sobre regressão ou evolução, chega-se a um ponto final: com tão pouco estímulo para se pensar hoje em dia, do que adiante eletricidade, rodas e fogo brando se o homem continua querendo usar apenas 1/3 do seu cérebro? A preguiça pode até ter servido como estimulante para o surgimento de invenções que transformariam a vida em sociedade, mas será que o preço a ser pago por elas é a ignorância pela acomodação?

30.9.08

só o cinza não treme


da chuva que cai
meus olhos ficam pálidos -
uma poça d'água.

casa fechada
rigor de inverno
na árvore despida;


sopro do vento
estalo no chão;



a última folha caiu.

23.9.08

Porque era ela, porque era eu.

Dona Elizabeth mora na rua ao lado. É uma senhora no auge dos seus 70 anos: cabelos brancos, arrumadinhos, vestido florido, óculos grandes, sorriso cativante, olhar sereno. Sua casa é a de muro baixo, com uma caixinha branca do correio e um banquinho na calçada. É lá que ela costumava passar as suas tardes sentada, a olhar o movimento da rua. Até que dona Beth adoeceu por dentro: a vida dela foi mordida.

O marido dela, seu José, morreu. Senhor de idade, com vários problemas de saúde, vivia em uma cadeira de rodas, se alimentando por meio de sonda.Lembro bem desses dois. Toda tarde seu José e dona Beth ficavam ali, na calçada da casa deles: ele, numa cadeira de balanço e ela, no banquinho ao lado. Enquanto as crianças brincavam no meio da rua, empinavam pipa, corriam atrás de uma bola, dona Beth distribuia pipoca para as que iam sentando ali perto, cansadas de tanta correria. Seu José observava tudo. Ao invés de usar palavras, ele aprendeu a se comunicar com os olhos: eles diziam tudo que era preciso.

Pois bem. Certo dia, estava apressada, caminhando num passo só. Fui subindo a rua, em direção a parada de ônibus, sem me importar muito com o que ou quem estava no caminho. Carregava um furacão dentro de mim, na verdade. Enquanto andava, lágrimas escorriam dos meus olhos e eu só queria parar de pensar em tantacoisa e poder me acalmar e estancar aquele choro todo. Não foi preciso muito.
Lembro como se fosse hoje: bastou um olhar. Um olhar. O olhar mais bonito que já recebi até hoje. E foi dele, seu José. Ele estava ali, na mesma calçada, na mesma cadeira de balanço, do mesmo jeitinho - pequeno, frágil. Só que ele carregava todo o sentimento do mundo ali dentro daqueles dois olhinhos. E, no instante em que me encarou, eu pude sentir tudo isso. Era o que me faltava: a compreensão de alguém que nem sequer sabia o porque das minhas lágrimas, mas as entendia. Fui embora tranquila, carregando ele comigo.

Desde os meus tempos de criança, nunca falei com seu José ou com dona Beth. Mas, me sentia responsável pelos dois. Mais por ele, confesso. Ele passou a ser o meu talismã. Por muitos dias, passei pela frente da casa esperando o mesmo olhar. Nunca mais o recebi. Até que, certo dia, seu José não apareceu mais na calçada. Passou a ficar sentado dentro da sua casa. É, os sinais da idade chegavam, e seu José parecia não querer lutar muito contra eles. Assim, passaram-se dias, e nada dele na calçada. Dona Beth já não saia mais também. As coisas não iam bem. Fiquei preocupada.
Resolvi fazer a coisa mais sem noção que fiz até hoje, mas que não me arrependo de jeito nenhum: escrever para seu José. Na verdade, arquitetei todo um plano: escreveria um poema, colocaria num envelope e endereçaria ao 'senhor da calçada', colocaria na caixa de correios e pronto, simples assim. Fiz (quase) tudo certinho; na hora de colocar na caixa de correio, fui vista por dona Beth. Saí correndo que nem uma criança assustada, com medo dela me perguntar se eu sou louca. [hahahaha]
Eu não sei se alguém leu o poema para ele. O que eu sei é que, por várias semanas, passei por lá, na esperança de vê-lo. E, nada. Dias depois, soube que ele tinha falecido. Pobre seu José. Meu talismã tinha ido embora e eu nem tive a oportunidade de conversar com ele.

E dona Beth? Dela, ninguém soube mais notícias. Na verdade, até se sabe um pouco. Ela parou de sentar no banquinho da calçada - passou muito tempo sentada na cadeira de balanço dele - e de distribuir pipoca para as crianças que brincavam lá na frente. Ela agora tinha morrido junto. A vida dela tinha sido mordida, e ela não queria mais estancar a hemorragia que isso tinha causado lá dentro dela.
Eu só sei que essa semana passei por lá e a vi sentadinha lá dentro, na cadeira de balanço. Percebi que devia a seu José alguma coisa. É, devia mesmo.
Hoje, escrevi um poema do Leminski num papel branco e coloquei na caixinha de correio dela.

O poema dizia o seguinte:

nada que o sol
não explique
tudo que a lua
mais chique
não tem chuva
que desbote essa flor

P. Leminski


Eu não sei o que vai acontecer. Parei de fazer as coisas pensando nas consequências. Mas, sinceramente, espero poder ajudá-la. Eu sei que a vida não é justa, mas perder um outro talismã é maldade demais comigo.


*Seu José morreu ano passado, no final do ano passado.
*Em relação a idade de Dona Beth, eu tou chutando. Me guiei pela idade da minha avó :)

21.9.08

!




Nenhum ato humano é uma imitação completa e exata, cópia fiel, reprodução precisa de um modelo ou papel redigido de antemão. Em todo ato, os modelos são, mais uma vez, reproduzidos em formas nunca totalmente idênticas. Todo ato é, até certo ponto, uma permutação original, uma versão única do modelo. Os modelos não existem de nenhum outro modo, a não ser no processo de contínua e inescapável transformação.

Pois bem. Volto a esse mal-estar da pós-modernidade: o efeito-estafa. Quem acompanha o trajeto kafkiano deste lugar, sabe muito bem que sou filha única do Samsa: trago comigo os pormenores de ser metamorfosis contínua.


Após um longo processo de mudança, adaptação e descoberta, retorno com mais uma fase dessa permuta de casca, aqui. Sabem como é...toda vez que a estafa chega, é necessário.