14.11.08

Hoje o samba saiu, procurando você

Foi de repente que o cigarro queimou os dedos dele. Tinha esquecido que, de uns tempos para cá, mantinha um ritual sagrado todo dia, nessa mesma hora, nesta mesma janela.
De uma maneira nem um pouco desajeitada, com um cigarro na mão, se encostava meio de lado na janela que dava para a rua principal. Meio de lado é eufemismo, já que, na verdade verdadeira mesmo, ele se virava completamente para a direita, como quem quer evitar o lado esquerdo de qualquer maneira. Fumava seu cigarro calmamente, como se estivesse matando o tempo, como quem espera algo junto de alguém que só pode te oferecer o silêncio e, visto isso, uma falsa promessa de companhia. Era mais ou menos assim o seu ritual.
As vezes, até que se distraia com alguma coisa: o carrinho de cds piratas, a mulata que passava rebolando em cima do salto alto, o garoto que descia a ladeira de bicicleta, ou algum conhecidovizinho que, sabendo que iria encontrá-lo ali, passava acenando e querendo puxar conversa.
Mas, a máxima atenção que poderia dar a alguém, seria um olhar sem um desvio súbito.
Havia nos seus olhos uma espécie de coisaestranha; sua mudez era a prova de que, definitivamente, ele carregava todo o peso da alma não nos seus ombros, e sim nos seus olhos.
Nos três meses que se passaram desde a sua vinda para esse sobrado, tinha saído do seu refúgio uma meia dúzia de vezes: algumas para comprar mantimentos, outras para caminhar estranhamente até a esquina e, logo em seguida, voltar para casa. A sua sorte era um amigo - seu único, aliás - que vinha toda semana conversar, trazer coisas que precisava e fazer companhia. Só.
Aliás, só era como o chamavam.
Alguns até arriscavam que ele era mudo; que uma espécie de mudez o atormentava. Ou uma gagueira. Sim, sim. Uma vez, correu um boato que ele gaguejava tanto, que resolveu parar de falar de vez, e, para evitar isso, acabou se isolando. Tinha gente que contava até que ele tinha inventado uma mentira e que o gato tinha comido a língua dele - essa as crianças detestavam. Ou então, falavam só que ele devia ter feito algo de muito ruim a alguém e tinha rejeitado a vida de vez.
Nisso eles tinham razão: ele tinha rejeitado a vida de vez.
A posição na janela não era proposital não: ele evitava ver o sol se pondo. Odiava ainda não ser forte o suficiente para conseguir vencer essa sua vontade de ver vida, mesmo que seja a dos outros. Foi aí que estabeleceu esse hábito de fumar na janela: só assim, uma vez no dia, poderia contemplar a vida como ela é, por um certo espaço de tempo - no caso, o tempo que o cigarro durasse.
O que se sabe é que, até aquela tarde em que o susto da queimadura do cigarro o fez derramar o seu copo de bebida bem em cima do cigarro caído no chão, causando o incêndio do seu apartamento todo, ele sempre soube esconder o seu mistério. Morreu ali, esperando alguma coisa que não se sabe bem o que era, a que horas chegaria, data, dia da semana, ano e todo o resto da documentação.
O acontecido serviu de pano para a manga de muitos boatos em toda a vizinhança: desde surto psicótico, tentativa de roubo + assassinato, até suicídio. Pois é.
Ainda tinham uns metidos a poeta que, sentavam ali na frente, e nas rodas de conversa, tentavam conquistar as mulatas da vizinhança fazendo versos sobre o estranho do cortiço e a sua morte vendo a vida passar pela janela.
Ah! e pensa que os sambistas deixaram barato? Na mesma noite em que ele morreu, no samba do bar da esquina só se ouvia
-
Pedro pedreiro tá esperando a morte
Ou esperando o dia de voltar pro Norte
Pedro não sabe mas talvez no fundo espere alguma coisa mais linda que o mundo
-
Era a única maneira que eles tinham de reverenciar o desconhecido. É que agora todo mundo entendia a mudez dele: ele carregava ânsia demais nos olhos para ter forças, ainda, de falar. E de viver. Quem sabe?
-
O samba continuou até o dia amanhecer.

Nenhum comentário: